quinta-feira, 13 de março de 2014

Remorso (Remoroso Mata)


Certas coisas que parecem ser fáceis se mostram mais duras do que esperamos. E assim, nunca que ia imaginar no que estava me metendo quando chegou naquela delegacia do interior aquele colono velho, lá com seus 80 anos, meio-surdo, e já bem cegueta, dizendo ter sido roubado. Haviam pego seu cartão do banco, e retirado todo o dinheiro de sua conta. Notou o sumiço somente quando foi sacar sua aposentadoria, e o gerente lhe mostrou o extrato, com diversos saques vultosos. O velhinho teve que ser acudido para não ter um troço. Haviam rapelado suas economias feitas em anos.
Pior era que este mesmo velho tinha sido vítima do mesmo tipo de golpe a menos de um anos atrás, e mesmo assim não aprendeu a nunca deixar a senha junto do cartão na carteira. Naquela vez o autor era um de seus sobrinhos. E desta vez ele achava ter perdido o cartão em uma festa de família. De novo a suspeita recaia sobre a família.
Da outra vez, com ajuda das imagens das câmeras de segurança do banco, acabei descobrindo o tal sobrinho. As imagens eram claras, dava pra ver a cara inconfundível do gatuno. Já que era uma família de albinos, não tinha erro. Ver aquela cara branca, sacando um maço de dinheiro do caixa eletrônico matou a charada. O vagabundo tinha se aproveitado que o tio tinha viajado, e arrombou a casa do pobre velho, pegou um talão de cheques e o cartão com a senha.
Até lá fui ouvindo a familiarada, enquanto não chegavam as imagens do banco. Um tipo mais estranho que o outro, quem não era louco, era cego, surdo, e os que restavam sem-vergonha mesmo. Somente não ouvi os três sobrinhos que era sobre quem recaiam minhas suspeitas. Queria ouvi-los quando já tivesse as imagens em mãos.
No resumo das oitivas fiquei sabendo que o sobrinho autor do ultimo furto não estava na festa, então era um suspeito a menos, de resto, nenhum fato revelador, apenas que a família estava fazendo churrasco reunida, e o automóvel do velhinho estava estacionado no patio da casa, que era murada, com a carteira no porta-luvas.
Passados quase dois meses do fato, chagaram as imagens das câmeras de segurança, com  saques efetuados em cinco agências diferentes, talvez para não deixar suspeitas, mas o ladrão era muito amador, em todas imagens aparecia a mesma pessoa, um rapaz alto, magro, e é claro “polaco”. Eu não o conhecia mas com certeza era da família do velho.
Chamei a vítima para ver se reconhecia o autor nas imagens, mas como ele é bem cegueta, não conseguiu ver nada, mesmo com o rosto colado na tela do computador. Mas perguntei a ele sobre um moça morena cor de cuia que aparecia em uma das imagens, aguardando o rapaz sentada em uma motocicleta em frente a agência, e ele respondeu que seu outro sobrinho, Fagner, filho de seu outro irmão, possuía uma motocicleta azul, parecida com a que eu vira nas imagens.  OK, então tudo levar a crer que o ladrão seria o tal Fagner.
Chamei a irmã dele e o pai. A irmã ao ver as imagens se fez de “loca”, dizendo não conseguir reconhecer a pessoa, pois, em certas imagens ele estava de óculos escuros e em outras de boné, como se isso tornasse a pessoa irreconhecível (como o super-homem que mete um óculos na fuça e ninguém mais o reconhece). Disse a ela que se a pessoa é da familia, até de costas se reconhece, mas a ordinária se fez de desentendida. Pra mim quem acoberta ordinário, o é o tanto quanto.
Logo mandei o pai do suspeito entrar. Ouvir pai, mãe, irmãos, esposa normalmente não leva a muita coisa, pois, a tendencia é de acobertarem as safadezas do acusado, pois, ao meu ver, se são do mesmo meio tendem aos mesmos vícios. Mas por incrível que pareça o Sr. Moacir, era gente humilde, lavrador com as mãos calejadas da lida, que criou cinco filhos a muito custo e sacrifício, e reconheceu o filho logo na primeira imagem. Ficou indignado, mal acreditando no que via. Seu filho mais novo, “roubando” o dinheiro do pobre tio, um velhinho decrepito, viúvo, que não tinha ninguém por ele nesse mundo.
O Moacir dava pulos na cadeira, xingava de vagabundo, marginal, e se perguntava como que um filho que criou com tanto custo, foi dar nisso. Vi que o homem estava fora de si, e com receio das consequências tentei minimizar, dizendo que Fagner era novo, tinha só 18 anos, havia cometido um erro e não era o fim do mundo, que tinha que assumir seus ato e consertar a cagada que tinha feito. Moacir ficou envergonhado, e prometeu pagar todo dinheiro a seu irmão, nem que tivesse que vender as roupas do corpo.
Como já era sexta-feira, deixei para conversar com Fagner na segunda. Naquele dia pela manhã fiquei envolvido com outras oitivas, e ao meio dia fui almoçar na casa de um amigo. Papo vai, papo vem, o tal amigo me pergunta se eu sabia da ultima. Despreocupado perguntei que tinha acontecido. Disse ele que um rapaz havia se enforcado naquela manhã mesmo. Perguntei que rapaz, e ele disse que um tal que havia “roubado” um dinheiro do tio. Senti uma coisa ruim subindo da boca do estomago. Acrescentou ele que parecia que naquela manhã o pai do enforcado havia  ligado pra tirar satisfações, dizendo que ele era a vergonha da família, que agora não poderia mais sair na rua de vergonha, que todos na cidade sabiam que ele tinha criado um ladrão, e que a partir daquele momento ele não era mais seu filho, e que ele iria fazê-lo pagar todo dinheiro, nem que tivesse que tirar seu couro para isso. E assim por remorso, medo do pai, ou vergonha, o guri saiu de moto estrada a fora, entrou mato, com uma corda nas mãos, subiu numa arvore e se “pendurou”. Foi encontrado naquela manhã, após sua mulher ter chamado a policia, estranhando seu sumiço.
Nisso que deu minha investigação, o que parecia tão fácil, apenas um furto, facilmente elucidado, tinha virado uma tragédia. Um turbilhão de emoções tomou conta de mim. Será que eu poderia ter evitado? Ter feito algo diferente? Por descobrir a verdade, um jovem com toda vida pela frente acabou se matando. Fagner não tinha antecedentes criminais, nunca tinha aparecido na delegacia, e nunca apareceu.  Imagino o trauma do pai, da mãe, e de toda família. Por pior que seja uma família, uma morte sempre é triste.
Quem poderia imaginar que algo tão banal poderia acabar nisso? Mesmo fazendo tudo certo, as coisas fugiram de meu controle, e até hoje “me da um ruim” ao recordar.