segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Bom Pastor.

Ser policial realmente surpreende, e talvez sejam estas reviravoltas e imprevistos que dêem a graça na coisa. Cada caso tem sua peculiaridade, suas verdades, suas mentiras, gente matando gente, gente enganando gente, e muitos que até parece que nem gente são. E quando se acha que já viu de tudo, sempre aparece um caso que nos surpreende. Assim foi o caso do Bom Pastor, estava eu em mais um desses reforço para resolver Homicídios “encravados”.  Aqueles casos de cerca de 10 anos atrás, onde nada foi investigado, ou nada se conseguiu, sem suspeitos, ou que simplesmente por não valer a pena não foram investigados. E por incrível que possa parecer, mesmo sendo o homicídio o delito mais grave, muitos acabam esquecidos empilhados nos montes de inquéritos dentro das delegacias das grandes cidades.

Por sorte ou azar fiquei incumbido do homicídio do “Gato Pelado”. Conforme a ocorrência, um homem de 30 e poucos anos, havia levado um tiro na testa, em plena luz do dia, na rua 2 do bairro São João, bairro pobre, apelidado de Cracolândia. Que o autor do disparo seria Marcio, irmão de Lucas, moradores do bairro. A vítima era Tiago de Tal, apelidado “Gato Pelado”. OK. Tudo muito bem, tudo muito bom, mas a ocorrência era de exatos dez anos atrás, e só constava o nome completo da vítima, não tinha sobrenome dos autores, muitos menos endereço, ou localização. Era ruim de achar um Marcio irmão de um Lucas, em um bairro de 100 mil moradores, talvez por isso que no inquérito além da ocorrência havia apenas a necropsia da vítima, nada mais.

Levantando a ficha do morto, me ajudou a entender mais o descaso dos colegas da época, o tal “Gato Pelado”, tinha umas cinco folhas de antecedentes, a maioria furto, alguns roubos, lesão corporal, tráfico, porte de arma, posse de droga e tentativa de homicídio. Provavelmente era disputa por boca de fumo, e nesses casos muitos policias fazem corpo mole, por achar que de certa forma a justiça já foi feita; justiça do morro, a justiça da rua (é justiça ou não? Aí cada cabeça uma sentença). Estava ali para investigar, não me interessava se a vítima era “santo”. Havia um cadáver, um crime e com certeza um autor. A lei é clara. Quem julga é o juiz, policial investiga, apura, “fuça”.

Pra começar chamei toda parentada do “Gato Pelado”, mãe, irmãos, sobrinhos, ex-companheira. Pra mãe ele era um anjo, um doce de rapaz, e o assassino um monstro, acho até engraçado como a morte apaga quase tudo, depois que morre todo vago vira trabalhador, bom filho e pai de família. Fora a choradeira a mãe não sabia de nada que ajudasse. Para a ex-mulher ele não valia nada, era um drogado, um ladrão e vivia lhe batendo (como dizem, opinião é que nem bunda, cada um tem a sua). Depois de ouvir uns 15, as melhores pistas foram dadas pelo cunhado do “Gato Pelado”, que disse que Marcio e Lucas eram filhos de uma tal de Nair, e que a um ano atrás havia visto Marcio no bairro Guajuvira, quando havia ido a um culto de uma igreja, e o tal Márcio era o Pastor. De matador a pastor, as voltas que o mundo dá...

Viramos o bairro Guajuvira, por dois dias, duas ou três dessas igrejinhas por quadra. Trabalho impossível. Nenhum fiel ou infiel, ninguém conhecia o tal Pastor Marcio.

Vasculhei o sistema para ver algum Marcio ou Lucas, filhos de uma tal Nair, e tinham vários, uns 1000, busquei junto a empresa de energia elétrica as Nair do bairro São João, tinham umas 100, moradoras próximo a rua em que o “Gato Pelado” foi encontrado umas 10. Aí o jeito era meter a cara na rua de novo, e bater de porta em porta.

Por incrível que pareça as primeiras 9 não deu em nada, na ultima, quando já estava pronto pra dar um pé nesse caso, batemos em uma casa, que o morador dizia estar alugando de uma tal Nair Fagundes, que achava ser mãe de um Marcio ou Mario. Muito pouco, mas era o que tínhamos, o morador nos indiciou o possível endereço da tal mulher. Chegando na rua indicada não encontramos o numeral, fui perguntar num mercadinho perto. Indaguei o bodegueiro, se conhecia alguma Nair naquela rua, ele disse que não, acrescentei, que era a mãe de um Mariio e de um Lucas, ele disse que conhecia dois irmãos com esses nomes, mas achava que o nome da mãe era Terezinha, mas que a irmã deles morava ao lado do mercadinho.

Já que era perto, não custava especular. Na casa um mocinha atendeu, perguntei do Marcio e Lucas filhos de Nair, e ela respondeu que conhecia, mas que eram filhos de  Terezinha Nair Silva. Tava aí minha Nair. A moreninha disse ser cunhada da irmã de Marcio e Lucas, e que eles não moravam ali, e não sabia seu endereço ao certo, mas que as vezes no final de semana Nair aparecia. Deixei um convite de comparecimento e meu telefone (mais sorte que juizo, procurando a mulher errada encontrei a pessoa certa. Sai a  cata de uma Nair Fagundes mãe de um Mario, e encontrei a Nair Silva, mãe do Marcio).

No outro dia me liga a tal Nair, querendo saber do que se tratava, disse que era um caso antigo, que ela não precisava se preocupar e que se pudesse trouxesse seus filhos junto, ela foi simpática e se comprometeu a comparecer no outro dia pela manhã. Sim ela não precisava se preocupar mesmo, já eles...

Ouvi a Nair rápido, que se surpreendeu com o teor da ocorrência, e a despachei logo, já que como mãe já esperava que mais atrapalhasse que ajudasse. Logo chamei Lucas, que tinha um belo currículo, vários furtos, tráfico, roubo, etc e etc. E a cereja do bolo era uma série de roubos a pedestre, roubando três pessoas na seqüência em menos de 1 hora; o primeiro numa praça, o segundo duas quadras mais pra frente, levou o tênis , e mais um quarteirão a careteira de outro; nunca tinha visto, tipo roubo a mão armada com barreiras ou em distancia, só parou por que a policia militar o deteve. Pobrezinho estava indo tão bem...

Lucas era um cara baixo e magro, com um olho vazado, se dizia ex-usuário de drogas, recém saído do presídio. Não dava para esperar muito de um cara desses, ainda mais acompanhado de uma advogadazinha nova, que o instruía a não dizer nada. Lucas visivelmente nervoso, mexendo uma moeda entre os dedos. Disse apenas que era amigo do “Gato Pelado”, isso eu já sabia, já tinha visto ocorrências de furto e roubo tendo os dois juntos como autores. Contou que no dia do acontecido seu irmão o procurou, querendo saber de “Gato pelado”, dizendo que ele tinha invadido sua casa e levado suas coisas, mas que não estava junto no local do fato, e não sabia mais nada.

Aí vi tudo, o “Gato Pelado”, ladrãozinho fino, furtou a casa de Marcio, que foi tirar satisfações e acabou matando o ladrão.

Marcio chegou enfiado num terno de Pastor, com uma bíblia embaixo do braço, acompanhado da mesma advogadazinha. Me cumprimentou todo cheio de nove horas e sentou, me chamando de senhor. Olhei sua ficha e não tinha nada, um cidadão exemplar a principio, apesar de ser irmão de um marginal como Lucas.

A advogada disse a ele que não precisava falar nada se não quisesse, e ele com a bíblia embaixo do braço, me disse:- Olha senhor, sou temente a Deus, não vim aqui pra mentir. E começou a falar de Jó, que deus tinha mandado 10 pragas a Jó, e ele resistiu, e tal e coisa e coisa e tal. Foram uns 15 minutos de missa. Eu concordando com tudo, dizendo que deus estava vendo, que a ele ninguém engana, que a justiça dos homens até falha, mas a dele nunca (quando o cliente é louco, o jeito é ser mais louco ainda).

Depois da pregação, Marcio despejou tudo aquilo que ele carregou por quase 10 anos. Era realmente um homem de fé, atormentado por ceifar uma vida. Contou que chegou em casa e viu tudo revirado, o DVD e TV novos que tinha comprado, em 10 prestações, tinham sumido, e até as roupas de sua mulher e de seus 5 filhos. Perguntou ao vizinho quem tinha feito aquilo, e ele disse que tinha visto o “Gato Pelado” saindo da casa com a TV. Bastou para aquele se tornar o dia de fúria de Marcio. Pegou uma arma emprestada com seu irmão Lucas, e foi pegar suas coisas de volta com o ladrão.

Chegou em frente a casa do “Gato Pelado”, bateu palmas e ele saiu com outro cara para fora. Exigiu suas coisas de volta, e o vagabundo, disse que não devolveria nada, que já tinha trocado por pedra (crack), e Marcio que vazasse dali, pois se não iria voltar na sua casa quando ele estivesse trabalhando e iria pegar sua mulher e suas filhas. Marcio homem de bem, tendo o seio de seu lar violentado, seus poucos pertences levados, e agora a honra de sua família ameaçada. Tudo ficou vermelho disse ele: - levantei o braço, fechei os olhos e apertei o gatilho, nem vi pra onde atirei, só vi ele caindo no chão. Lucas me puxou e disse pra correr, saí dali correndo, joguei a arma num córrego e fugi.

Não sei se algum dia tive uma confissão tão completa e sincera. Lei de talião: olho por olho, dente por dente. O pai de 5 filhos, pastor, matou o ladrão drogado. Quem julga esse caso? Nenhuma vida vale mais que outra. Dura Lex, sed lex (É dura mas é a lei).

Autor: FSant'Anna